Por: Everton Marcos Grison
É
perfeitamente cabível contar a história da humanidade a partir das cartas que
as pessoas trocaram ao longo das épocas. Desde a antiguidade, as informações,
felicitações, manifestações de afeto, notícias tristes, testamentos entre
muitas outras formas de informações, foram trocadas via cartas. Elas possuem um
mistério, apenas revelado àqueles que se dispõem ao risco do registro. A carta
é uma manifestação do pensamento, o início do movimento que se faz parado. O primeiro
passo de uma corrida, a volta performática da letra no início do relato enviado
a alguma condessa. Ambos são claras declarações da vida do pensamento, que para
demonstrar-se em plenitude, exige seu momento, quer o seu tempo, sua tinta, a
grafia...
As
cartas nos tempos presentes perderam seu trono por muito incorruptível,
substituídas pelos correios eletrônicos, pelas mensagens rápidas, supostamente
materializadas na possibilidade do som e na visualização, via equipamentos
eletrônicos, de remetente e destinatário. O trono foi perdido, por vezes, para
a mentalidade anêmica dos 140 caracteres, entretanto, a grande aceleração
político-econômica-social exigiu um modelo rápido, prático e principalmente sem
materialidade. O que antes era um debate ontológico da presença passou a ser o
imaterial do virtual.
As
cartas serviram para declarar, suprimir e denunciar as mais estranhas
adversidades, funcionando como um arauto da popularização do que se fazia nas
masmorras. As cartas salvaram humanos, mudaram o mundo e abriram portas para o
novo. Não se fecharam em si mesmas na característica auto-suficiência que se
consome.
Especialmente
no Brasil, foi através de uma carta que o controverso presidente Getúlio Vargas
deixou registrado que saia da vida para entrar na história, imortalizado na
memória de muitos. Por outro lado, as cartas mostraram ao mundo, que a Ditadura
Militar Brasileira (1964-1985), torturava, matava e consumia pateticamente com
os restos mortais dos “criminosos”. Eram todos bandidos de alta periculosidade,
que tinham como crime a defesa irrestrita das classes menos favorecidas. Tais cartas
relataram existências, expondo uma lógica política muito perversa, e ao modelo
de Sócrates e Homero, combateram a desmemoria de todos. Como se percebe;
Este “sobreviver pessoalmente na memória
dos outros” estava diretamente implicado na ideia de denúncia, isto é, a carta
funcionando como alternativa de explodir as barreiras físicas da prisão, é o destinatário
múltiplo, é a carta endereçada a toda e qualquer pessoa de bem que pudesse a
partir da sua leitura – estabelecer qualquer elo de solidariedade com o
remetente encarcerado. (RODRIGUES, 2015, p.
12-13)[1].
O
livro recentemente publicado com o título: Cartas
de Esperança em tempos de Ditadura: Frei Betto e Leonardo Boff escrevem a Alceu
Amoroso Lima (217 páginas), com
organização, introdução e notas do Dr. Leandro Garcia Rodrigues e publicado
pela Editora Vozes, vem somar-se a um grande interesse nas pesquisas
historiográficas e literárias brasileiras, que reconhecem as cartas como
importante documento histórico, além de contribuir de forma inestimável, para o
conhecimento da população em geral, acerca do período dos “anos de chumbo” do
Brasil. Tal epistolário é composto de 22 cartas, “... denso em temáticas abordada, chega ao público leitor oferecendo
uma nova forma de se encarar o texto epistolar – como testemunho, relato, desabafo
e denúncia” (p. 10). No total de 22 cartas, 04 são de Alceu e 18 são de
Frei Betto em um testemunho e testamento vivo da e para a humanidade.
O
livro é composto de um ensaio/introdução de belíssima erudição, com
referenciais filosóficos, históricos e literários, demarcando claramente o
lugar do leitor em meio à pesquisa epistolar. Nos anexos são encontradas
imagens dos originais das cartas, textos publicados em jornais por Alceu
Amoroso Lima, no período em que os dominicanos estiveram presos, e textos de
Frei Betto sobre Alceu. Também estão presentes algumas cartas trocadas entre
Alceu e Leonardo Boff, as homenagens feitas por Boff na ocasião dos 85 anos de
vida de Alceu, além da homilia da missa de sétimo dia do jornalista. Finalizando
o livro, um ensaio cheio de vida e emoção, de autoria de Leonardo Boff, ressaltando
as características mais determinantes do cavaleiro do pensamento Alceu Amoroso
Lima.
Alceu significou no pensamento
brasileiro o feliz encontro entre o saber cientifico e sua imbricação com a
filosofia em função do esclarecimento do problema humano na dimensão pessoal,
social, histórica e religiosa... Sua denúncia nunca perdeu seu alto nível.
Soube sempre situar-se num horizonte inatacável e aberto, para além do
ideológico, moda do dia, sem qualquer concessão ao rancor ou à lamúria. Atacado
e até caluniado, jamais se defendeu. A verdade brilha com luz própria, não
emprestada; ela mesma se encarrega de desfazer as mentiras. (p: 204, 207).
Este livro da editora Vozes pode ser adquirido em Curitiba pelo Telefone (41) 32331392.
*Notas:
[1]
RODRIGUES, Leandro Garcia (org.). Cartas
de Esperança em tempos de Ditadura: Frei Betto e Leonardo Boff escrevem a
Alceu Amoroso Lima. Petrópolis: Vozes, 2015.
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