Nascido
na cidade de Moscou em 1821, na Rússia czarista, Fiódor Mikhálovitch
Dostoiévski consagrou-se não só como um dos escritores mais célebres da
literatura russa, mas também da literatura universal. Foi autor de inúmeras
obras, como Gente Pobre (1846), Memórias do Subsolo (1864), Crime e Castigo (1866), Irmãos Karamázov (1880), entre outras, recebidas de forma muito
positiva pela crítica da época.
Dostoiévski,
provido de uma habilidade psicológica singular, é capaz de despertar no leitor
a angústia vivida por um criminoso diante de um conflito ético, antes e depois
da consumação de um homicídio (Crime e
Castigo); também de conduzi-lo à mente de um paradoxalista anônimo com seus
pensamentos labirínticos, a ponto de partilhar de sua irascibilidade, seu tédio, seu triunfo e sua derrocada (Memórias
do Subsolo). Quem lê Dostoiévski tem
a sensação de nunca ter fechado o livro, uma vez que suas histórias, costuradas
a partir de retalhos colhidos de sua própria época, nos despertam para nossa
humanidade e o seu aspecto mais obscuro, o qual assombra até mesmo a alma mais
piedosa, ainda que esta tenha um mosteiro como seu lar (Irmãos Karamázov).
![]() |
Fonte: Web |
Dostoiévski
foi condenado à morte por fuzilamento no ano de 1847, devido ao seu
envolvimento com um grupo revolucionário chamado Círculo de Petrochevski 1.
Contudo, “No dia 22 de dezembro de 1849, ele é levado ao pelotão de
fuzilamento: todos já fizeram as devidas orações, puseram o capuz, despediram –
se uns dos outros, estão presos aos postes e eis que ouvem a comutação da pena
de morte, que é substituída por quatro anos de trabalhos forçados”.2
O que este
fato representou para a vida do escritor vai ser descrito através de
Raskólnikov, personagem principal de Crime
e castigo, ao citar uma passagem de Notre-Dame
de Paris, de Victor Hugo
“Onde foi –
pensou Raskólnikov seguindo adiante -, onde foi que eu li que um condenado a
morte, uma hora antes de morrer, pensava e dizia que se tivesse de viver em
algum lugar alto, em um penhasco, e numa área tão estreita que só coubessem
dois pés – e cercado de abismos, mar, trevas eternas, solidão eterna e
tempestade eterna- e fosse forçado a permanecer assim, em pé no espaço de um archin a vida inteira mil anos, toda a
eternidade, seria melhor viver assim do que morrer agora!? Contanto que pudesse
viver,viver,viver! Não importa como viver, mas apenas viver!....Que verdade!
Deus, que verdade! O homem é um canalha! E é canalha aquele que por isso o
chama de canalha” 3
Os tempos
árduos de trabalhos forçados nos campos de Omsk serão registrados em sua
primeira publicação após o cumprimento da pena, na obra intitulada Recordações da casa dos Mortos (1862), a qual Tolstói classificou como a melhor
de toda a literatura moderna4, e Nietzsche como “um dos livros mais
humanos já escritos”5. Ainda em Crepúsculo
dos Ídolos, o pensador alemão declara de forma enfática a importância que
Dostoiévski representou para o desenvolvimento de seu pensamento,
Dostoiévski, o único psicólogo, diga –
se de passagem, do qual tive algo a aprender: ele está entre os mais belos
golpes de sorte de minha vida, mais até do que Stendhal. Esse homem profundo, mil vezes correto em sua baixa estima dos superficiais
alemães, percebeu de modo muito diverso do que esperava os siberianos entre os
quais viveu por longo tempo, autores de crimes graves, para os quais não havia
mais retorno a sociedade – como sendo talhados na melhor, mais dura e mais
valiosa madeira gerada em terras russas. 6
A casa à
qual o título da obra de 1862 se refere é a prisão; os mortos são os presos e,
dentre eles, está Dostoiévski, que desde então começa a conhecer a vida a
partir de um panorama absolutamente distinto da cidade de Petersburgo, na qual
morava, declarando que “Do lado de cá o
nosso mundo, em nada parecido com aquele, que por isso nos parecia uma
ilustração de contos de fadas. O nosso era um mundo bem outro, regido por
estatutos, disciplinas, horários específicos; uma casa para mortos vivos; uma
vida à margem e homens de vivência muito diferente. É esse canto que proponho
descrever aqui.”.7
Dostoiévski afirma a seu irmão, na carta de
1854, que para sobreviver aos infortúnios da prisão, fora determinante a eterna
concentração em si mesmo, onde se refugiava da realidade amarga. A severidade
dos suplícios na Sibéria, além dos exaustivos trabalhos executados sob
temperaturas absurdamente baixas, como 35 ou 40 graus negativos, consistia na
anulação de si em razão da vida comunitária imposta, que privava o prisioneiro
a um momento consigo próprio. Pois, segundo Dostoiévski, “a vida em comunidade é um ato de escolha, voluntário, ao passo que na
prisão é imposta, não estabelece laços, e eu creio que cada prisioneiro sente
isso; ainda que inconscientemente, sente isso.”8
Na prisão,
imperava em Dostoiévski o desejo nostálgico da singularidade, da liberdade de
andar pelas ruas de São Petersburgo, sentir em seu rosto a brisa gélida de um
fim de tarde, e poder dirigir-se à sua escrivaninha, dispor da pena, tomado
pela potência artística da criação literária. Mas na prisão, quem era
Dostoiévski? Afinal, ainda que seu crime não pudesse ser comparado a um
homicídio, um estupro ou a um roubo, isto não fazia a mínima diferença, uma vez
colocado ao lado de homens que cometeram tais delitos.
![]() |
Fonte: Web |
Na carta,
Dostoiévski solicita dinheiro e livros. A necessidade destes e de momentos a
sós para o diletantismo intelectual, é enfatizada em vários parágrafos,
colocada ao lado de desconfortos descomunais causados em razão de suas doenças
crônicas, como o reumatismo e a epilepsia: “adicione
a todos esses inconvenientes a quase impossibilidade de ter acesso a um livro;
quando se consegue um, é preciso lê-lo escondido”, declara Dostoiévski na
carta. Mais adiante ele diz a Mikhail: “Saiba,
porém, irmão, que os livros são minha vida, meu alimento, meu futuro”.10
É
por esta razão que podemos afirmar, como Nietzsche, que nas obras de
Dostoiévski é possível ouvir ecoar a voz do sangue. Como expressarmos de outra
maneira, uma vez rodeados de uma miríade de livros exangues, obras
empalidecidas, que têm formado uma gama de leitores que consomem idéias e
apenas as reproduzem, tornando-se uma geração de pensadores anêmicos? Não é de
causar espanto a raridade de literaturas que permanecem, contrastando com a
maioria natimorta: literaturas que nascem condenadas ao esquecimento.
No
entanto, para muitos espíritos, Dostoiévski continuará sendo intragável, um
mero enfeite na prateleira como símbolo de status intelectual, pois trata de
verdades amargas. Mas, como afirma Liermontóv na introdução de sua obra O
Herói de Nosso Tempo, influência inegável de toda a obra dostoievskiana, “muita gente tem sido alimentada a doces,
por isso anda de estômago deteriorado; são necessários remédios amargos,
verdades azedas. Mas não fiqueis pensando entretanto, que o autor deste livro
tenha tido alguma vez o orgulhoso sonho de corrigir os vícios humanos. Deus o
livre de tamanha ignorância! Achou simplesmente divertido descrever o homem
contemporâneo tal como o entende e, para a sua e a vossa infelicidade, o homem
que ele tem encontrado com mais frequência. Já é bastante que tenha apontado a
doença, porque, como curá-la, só Deus sabe.” 11
Agradecimento:
Revisão Ortográfica e Gramatical : Thaís Carolina da Silva;
NOTAS
1. O Círculo de Petraschevski era um grupo de
socialistas utópicos que se reuniam regularmente a fim de discutirem estratégias
para a instauração de uma revolução política na Rússia em 1848. Mas segundo
PETICOV (2010, p. 6) “ Dostoiévski nada tinha de revolucionário socialista :
seu interesse, ali prendia – se mais ao ambiente intelectual que dominava as
reuniões, embora naturalmente, manifestasse de forma intensa sua revolta frente
a situação da Rússia e de seu povo, que em grande parte, ainda vivia sob
servidão com características feudais e terrível miséria”;
2. BEZERRA, 2001,
p.10; In. Dostoiévski, Crime e
Castigo;
3. DOSTOIÉVSKI,
2001, p.172;
4. Cf. sinopse da
Contra Capa de Recordações da Casa dos Mortos; Ed. Nova Alexandria, 2010;
5. Cf. Cartas de Nietzsche a Heinrich
Közelitz (Peter Gast) em 1887; Disponível em : http://www.consciencia.org/nietzsche-cartas-de-1887 consultado em 04/06/2014;
6. NIETZSCHE, 2006, p. 95;
7.DOSTOIÉVSKI,2010,p.19;
8. DOSTOIÉVSKI,2010,p.19;
9.
Esta Carta na íntegra pode ser lida no pósfácio de Recordações
da Casa dos Mortos publicada pela Editora Novalexandria;
10. DOSTOIÉVSKI,2010,p.19;
11.LIÉRMONTOV, 1999, p. 2 -3;
BIBLIOGRAFIA
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. Tradução de Paulo
Bezerra. Ed. 34, São Paulo – 2001.
DOSTOIÉVSKI,
Fiódor. Recordações da Casa dos Mortos.
Tradução de Nicolau S. Peticov. Ed. Nova
Alexandria, São Paulo – 2010.
NIETZSCHE,
Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. Companhia
das Letras, São Paulo – 2006.
LIERMONTÓV, Mikail. O Herói de Nosso Tempo. Tradução de Paulo Bezerra. Ed. Martins Fontes, São Paulo - 1999.
LIERMONTÓV, Mikail. O Herói de Nosso Tempo. Tradução de Paulo Bezerra. Ed. Martins Fontes, São Paulo - 1999.
3 comentários :
Muito bom!
Muito interessante o texto Oséias. Doistoiévski é o homem que vive na obra, a escreve a partir de si e sobre si, trata de seu tempo e é extemporâneo, pois seus atinos continuam a fazer sentido. Por que é literatura boa? Pois está muito além dos nossos 140 caracteres atuais.
Um ótimo e breve estudo da vida deste autor. Eu nunca li nada dele, mas o mais interessante foi ver como uma vida de ideais e sofrimento pôde influenciar na literatura de Dostoiévski. E assim vale para qualquer autor. Na parte em que o Oseias comenta as literaturas fracassadas de hoje eu consigo ligar ao fato de que não se aprofunda um motivo para escrever um livro, e sim pensa-se no que o público quer por causa de uma moda, pressão das editoras, etc.
Postar um comentário